O presépio de Paco
Depois que os Gonzales foram
para a cidade, o casebre ficou vazio. Não era um casebre estável, não; era
antes um barraco inseguro. Quando o vento soprava forte das montanhas, as
tábuas soltas das paredes batiam e o telhado de latão ameaçava voar. Mesmo
assim, era um casebre. Paco morava com os pais a poucos passos do casebre dos Gonzales. Tinha dez anos e era bastante alto para a idade. Na colheita do milho, Don Alfredo tinha-lhe pago metade do salário de um homem. Muito pouco, achava Paco, pois ele trabalhara como um homem inteiro. Mas o que Paco pensava, pouco interesse tinha para Don Alfredo.
Paco tinha dado à mãe o seu salário, todas as noites. O salário quase todo. Mas o dinheiro escoava-se por entre os dedos da mãe.
— É sempre pouco — suspirava, ao voltar da loja de Don Alfredo com algumas coisitas.
— E o dinheiro acaba sempre em Don Alfredo — dizia Paco. — Ele dá e volta a tirá-lo.
Por vezes, Paco também pensava em fazer como os Gonzales, fugir da Hacienda e ir para a cidade. Mas da vida deles lá, não ouvira nada de bom. Os seus amigos Pedro e Alberto davam-se por contentes quando conseguiam limpar os sapatos aos turistas em troco de umas parcas moedas e o pai Gonzales ainda não tinha encontrado trabalho.
E havia ainda Juanita, a burra velha que Paco herdara do avô que falecera no ano anterior. A burra e o maravilhoso chapéu de palha de abas cargas tinham sido a sua parte da herança. O avô também não tinha muito mais para deixar, bem pelo contrário. Na loja de Don Alfredo até ficara com dívidas. Mas Don Alfredo, por vezes, também sabia ser generoso. E riscara simplesmente a dívida. No entanto, observou a burra com atenção mas, como se disse, Juanita era velha e o pelo parecia comido pelas traças.
— Se queres ficar com o animal, por mim, fica — dissera Don Alfredo a Paco.
Depois de dar de comer a Juanita, Paco alojou a burra no casebre dos Gonzales e Don Alfredo não lho proibiu. Sim, às vezes, Don Alfredo era mesmo generoso. Mas o melhor era que tinha autorizado Paco a ir visitar Doña Clara.
Doña Clara era a velha tia de Don Alfredo.
Teimara em ensinar os filhos dos trabalhadores das barracas a ler e a escrever. Paco, contudo, tinha de trabalhar o dia inteiro nos campos e Doña Clara discutira com Don Alfredo por causa disso.
— Paco é o meu aluno mais aplicado — dizia ela. — Já tem dez anos, mas eu queria que ele pudesse ficar na escola. É inteligente.
— As cabeças inteligentes são perigosas, tia — respondeu Don Alfredo. — Primeiro aprendem a ler e a escrever, depois querem um salário maior e, por fim, um pedaço de terreno.
Mas Doña Clara acabara por impor a sua vontade e Paco fora. Do que ele mais gostava na escola era das histórias de Doña Clara. Quando contava, os olhos tornavam-se-lhe grandes e redondos e as crianças ficavam caladas como ratos. Uma das suas histórias foi a que deu origem àquela noite maravilhosa da qual, anos mais tarde, muita gente na Hacienda ainda falava.
Doña Clara contara a história de Belém, mas não ficara atrás da secretária. Curvada em frente às crianças, deslocara-se de um lado para o outro fazendo de São José. Depois erguera- -se e fizera de estalajadeiro a expulsar Maria e José rudemente e com má cara. As crianças tinham gostado muito, principalmente quando fez de anjo. Em pé, de braços abertos, anunciando a boa nova. A cara, radiante, resplandecia como a de um anjo. E quando fizera de boi e de burro e gritara “i-ó”, as crianças tinham rido. Mas a alegria só contagiara realmente todos quando ela, em silêncio e transformada de repente numa jovem, embalava nos braços o Menino Jesus.
Doña Clara conseguia ser tudo: Maria e José, o anjo, os pastores, os animais e os três Reis Magos. Só quando Don Alfredo, inesperadamente, lá ia dar uma vista de olhos, é que tornava a ser a severa professora Doña Clara.
Ora foi precisamente esta história do nascimento de Jesus que se alojou na cabeça de Paco e que ficou a chocar dentro do rapaz …Passado algum tempo, saíram a voar uns passarinhos às cores...
Certo dia, Paco enfeitou a cabana dos Gonzales com hera e arranjou, ninguém sabe onde, uma manjedoura. Juanita, a burra, teve de ser presa porque estava constantemente a comer a hera. De um pedaço de cartão cortou uma estrela que pregou por cima da porta da cabana.
Em seguida, Paco lavou-se minuciosamente como nunca se lavara ao longo do ano, esfregou todas as nódoas do poncho e escovou o seu belo chapéu.
— O Paco vai à procura de noiva — troçou a mãe. Mas ele limitou-se a rir.
Fez das tripas coração e foi à casa do patrão, em frente. Nunca antes estivera em casa de Don Alfredo. Bateu timidamente à porta grande. Carlos, o velho criado, veio abrir. Ergueu as sobrancelhas, admirado, e olhou para Paco.
— Preciso de falar com Don Alfredo — disse o rapaz. Como Carlos nada dissesse, Paco tirou meio peso de prata que guardara do dinheiro da colheita. Mostrou a moeda e meteu-a na mão do criado.
— É urgente, Carlos. Muito urgente.
Carlos virou-se e o rapaz seguiu-o pelo átrio grande e fresco.
Paco só conhecia algo igual das histórias de encantar. O chão estava coberto de tapetes, as paredes decoradas com quadros e do teto caía um lustre com milhares e milhares de gotas de cristal brilhante. Carlos fez sinal ao rapaz para esperar e desapareceu por trás de uma imponente porta escura. Pouco depois, Don Alfredo veio ao átrio e falou asperamente a Paco.
— Isto são modas novas? Vens a nossa casa sem ser chamado e nem tiras o chapéu da cabeça!
Paco arrancou imediatamente o chapéu e disse, a gaguejar:
— Eu gostava… eu queria perguntar-lhe… é que eu preciso de um boi, Don Alfredo, com urgência.
Don Alfredo riu alto e exclamou:
— Ouçam isto! O rapazinho quer um boi. Como se eu desse um boi, assim, por dá cá aquela palha.
Abriram-se duas portas ao mesmo tempo e Doña Clara e Doña Esmeralda, a mulher de Don Alfredo, foram ver o que se estava a passar no átrio.
— Ele quer um boi! — exclamou Don Alfredo a rir. — E porque não uma vaca ou uma manada inteira?
— Um boi só, Don Alfredo, por favor. Mas tem de ser um animal forte. Não quero o boi de oferta. Só queria pedi-lo emprestado por uma única noite.
As gargalhadas de Don Alfredo calaram-se.
— Emprestado? Um boi? Só por uma noite?
Paco entusiasmou-se e desatou a falar:
— Quero construir um presépio como Doña Clara contou e o meu burro vai lá estar, como Doña Clara contou, e Maria e José, como Doña Clara contou, e também um boi, como…
— Doña Clara contou — disse Don Alfredo, olhando para a tia, ironicamente. Mas esta limitou--se a encolher os ombros.
— Para se poder imaginar melhor aquilo do nascimento em Belém.
Paco disse a última frase muito baixinho.
Don Alfredo olhou para o rapaz com um olhar severo. Paco dirigiu-se aos poucos e às arrecuas para a porta de entrada.
— De dia para dia, estes Pacos andam a tornar-se cada vez mais atrevidos — retumbou Don Alfredo.
Doña Clara disse então:
— Ficas prejudicado, querido sobrinho, se fizeres a vontade ao rapaz? Não vais ficar mais pobre por isso e, por uma noite, ele vai sentir-se rico como um rei.
Don Alfredo ainda hesitou, mas acabou por dizer:
— Oh, por mim… que seja! O Natal está para breve.
O resto foi muito fácil. Maria Simancar era só um pouco mais velha do que Paco. Ia fazer de mãe de Deus porque se chamava Maria e porque tinha uns longos cabelos pretos ondulados. Maria queria trazer o irmãozinho, um bebé rechonchudo.
— Porque ele quase nunca chora — disse.
Com o São José é que foi mais difícil. Paco teve de convencer Fernando e até prometer- -lhe uma garrafa de aguardente de agave até ele se dispor a fazer de marido de Maria.
— Os pastores vão vir…— disse Paco, esperançado.
— E o anjo? — perguntou-lhe a mãe. Paco hesitou um pouco mas depois disse:
— Tu, mãe, foi o que pensei.
O pai riu tão alto, que até o papel que colara sobre o vidro partido se rasgou.
— Um anjo redondinho de cem quilos — disse em voz muito alta e, de tanto rir, até ficou sem poder respirar.
— Não tenho nenhum vestido branco, Paco — disse a mãe, triste. — Os anjos têm de brilhar.
— Mas tens uma voz maravilhosa, mãe. Podias ficar atrás da casa dos Gonzales. Depois cantas o que todos os anos costumas cantar: “Aleluia, paz e aleluia!”
O pai ainda se ria, o que irritou a mãe, que disse:
— Vou fazer isso, Paco.
À noitinha, Don Alfredo mandou o boi. Um pastor ainda novo trouxe-o à arreata. Quando o sol se pôs, saíram quase todos das suas casas e, conversando e rindo, dirigiram-se à cabana dos Gonzales. A porta e as janelas estavam abertas de par em par. Maria estava sentada em frente à manjedoura e deitara o bebé nas folhas de milho. O boi e o burro estavam pacificamente deitados no chão e Fernando, encostado a um cajado, em pé, atrás de Maria.
Paco acendeu uma lanterna. Era uma cena impressionante, a que se via dentro do círculo de luz. Todos se calaram e ficaram a olhar. Mais tarde, ninguém soube dizer quem começou, mas, de repente, alguém ofereceu um melão maduro, um outro colocou três cestos de milho em frente à manjedoura, uma mulher ofereceu uma fralda quase nova…Um jarro de leite e um pão fresco foram também entregues na cabana.
No preciso momento em que Don Alfredo, Doña Esmeralda e Doña Clara chegaram, a mãe de Paco, atrás da cabana, começou a cantar o Aleluia com uma voz límpida. Arrefecera e Don Alfredo e as duas senhoras tinham-se embrulhado em mantas largas e compridas. Abriu-se um caminho à sua frente e entraram os três na cabana dos Gonzales. Passando por debaixo da estrela.
— Ui! — disse Doña Esmeralda. — Não cheira nada bem aqui dentro.
Tirou da bolsa um frasquinho de
perfume. Mas este escorregou-lhe das mãos e partiu-se no chão. Um aroma
maravilhoso encheu então a cabana. Don Alfredo olhava em volta à procura de
Paco. Entretanto escurecera, e não conseguia vê-lo à luz fraca da lanterna.
Colocou pois uma moeda junto das prendas. Brilhava como ouro.
Doña Clara tinha encontrado Paco.
- Para que tudo seja como deve
ser — segredou-lhe — trouxe uma bolsinha com mirra.E, por um instante, ela foi um dos Reis Magos. E por algum tempo houve uma grande paz na cabana dos Gonzales. Don Alfredo e a mãe, Doña Esmeralda, Doña Clara e Maria, até o próprio Fernando rabugento, nenhum deles era pobre ou rico, senhor ou trabalhador, senhora rica e elegante ou mulher índia pobre. Naquele instante, todos eram simplesmente homens e mulheres.
A luz da lanterna apagou-se. Quando começaram a sentir o frio da noite, todos partiram, uns para as suas cabanas, outros para a casa senhorial. No entanto, a partir daquela noite em que lhes fora dado antever um outro mundo, as pessoas da aldeia passaram a contar, até aos dias de hoje, a história de Paco e do seu presépio.
Willi Fährmann
Ein Stern ist aufgegangen
Würzburg, Arena Verlag, 2003
(Tradução e adaptação)
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